A modernidade fez-nos acreditar que a razão, a ciência, o progresso e a autonomia humana eram as únicas ferramentas na pavimentação de um mundo melhor. Forjado num contexto de profundas mudanças na Europa, este conceito invisibilizou saberes de povos não-europeus, não-citadinos e de mulheres, relegando-os à esfera das crendices e dos misticismos. Em seu livro Borderlands/La Frontera: The New Mestiza (1987), Gloria Anzaldúaapresenta o conceito de conhecimento de fronteira, algo que não pertence totalmente a um lado ou a outro, mas que habita o espaço entre eles. A autora propõe que esse tipo de conhecimento é flexível, adaptativo e potencialmente transformador, pois surge das complexidades e desafios de viver em constante movimento entre mundos distintos. O termo fronteira é trazido tanto como uma metáfora cultural e identitária quanto como uma referência a uma realidade geográfica muito específica: a fronteira física entre o México e os Estados Unidos, uma região viva que gera identidades complexas e ambíguas. Tomo a liberdade de transportar esta fronteira para o Atlântico, um territórioque enlaça três continentes e onde deu-se o maior fluxo de seres humanos e não humanos e de objetos desde o séculoXVI. Um oceano que liga e afasta Brasil e Portugal.
Atlântico entre nós, a presente exposição, ressalta o diálogo cromático e conceitual entre obras das irmãs Gelli (Alice e Gabi) produzidas no Rio de Janeiro e de Daniel Mattar feitas em Lisboa, em que estão presentes maneiras de localização no mundo. As irmãs Gelli trazem conhecimentos repassados pelas avós: técnicas manuais, dizeres e memórias, ferramentas poéticas de situar-se na vida e no cosmo. O uso de plástico reciclável adiciona não apenas um caráter de sustentabilidade e respeito para com os oceanos, mas também um movimento cíclico da matéria. As artistas em sua reconexão com as matriarcas de sua família, recriam horizontes, céus mutantes, figuras que nos levam a ver mapas, reavivando a afirmação de Ailton Krenak de que o futuro é ancestral.
Há tempo que as obras fotográficas de Daniel Mattartraziam a volumetria e uma certa cartografia abstrata como latência. Agora estes elementos estão explícitos em sua nova safra. O artista passou a trabalhar com cerâmica e pigmentos que tridimensionalizam
O azul permeia quase todas as obras aqui presentes tornando-se uma espécie de território cromático fronteiri
Cristiana Tejo