Atlântico Entre Nós

7 Novembro - 7 Dezembro 2024

 

A modernidade fez-nos acreditar que a razão, a ciência, o progresso e a autonomia humana eram as únicas ferramentas na pavimentação de um mundo melhor. Forjado num contexto de profundas mudanças na Europa, este conceito invisibilizou saberes de povos não-europeus, não-citadinos e de mulheres, relegando-os à esfera das crendices e dos misticismos. Em seu livro Borderlands/La Frontera: The New Mestiza (1987), Gloria Anzaldúaapresenta o conceito de conhecimento de fronteira, algo que não pertence totalmente a um lado ou a outro, mas que habita o espaço entre eles. A autora propõe que esse tipo de conhecimento é flexível, adaptativo e potencialmente transformador, pois surge das complexidades e desafios de viver em constante movimento entre mundos distintos. O termo fronteira é trazido tanto como uma metáfora cultural e identitária quanto como uma referência a uma realidade geográfica muito específica: a fronteira física entre o México e os Estados Unidos, uma região viva que gera identidades complexas e ambíguas. Tomo a liberdade de transportar esta fronteira para o Atlântico, um territórioque enlaça três continentes e onde deu-se o maior fluxo de seres humanos e não humanos e de objetos desde o séculoXVI. Um oceano que liga e afasta Brasil e Portugal. 

Atlântico entre s, a presente exposição, ressalta o diálogo cromático e conceitual entre obras das irmãs Gelli (Alice e Gabi) produzidas no Rio de Janeiro e de Daniel Mattar feitas em Lisboa, em que estão presentes maneiras de localização no mundo. As irmãs Gelli trazem conhecimentos repassados pelas avós: técnicas manuais, dizeres e memórias, ferramentas poéticas de situar-se na vida e no cosmo. O uso de plástico reciclável adiciona não apenas um caráter de sustentabilidade e respeito para com os oceanos, mas também um movimento cíclico da matéria. As artistas em sua reconexão com as matriarcas de sua família, recriam horizontes, céus mutantes, figuras que nos levam a ver mapas, reavivando a afirmação de Ailton Krenak de que o futuro é ancestral. 

Há tempo que as obras fotográficas de Daniel Mattartraziam a volumetria e uma certa cartografia abstrata como latência. Agora estes elementos estão explícitos em sua nova safra. O artista passou a trabalhar com cerâmica e pigmentos que tridimensionalizam pinturas. As coordenadas geográficas situam-nos no meio do percurso entre Lisboa e Rio de Janeiro e as esculturas acopladas às telas e que se desprendem delas remetem a ilhas e arquipélagos formados pela ação de vulcões (a exemplo dos Açores). Assim como as ilhas vulcânicas, a cerâmica origina-se da fusão entre terra, água e fogo e ao ser submetida a altas temperaturas, passa de um estado maleável para uma forma endurecida, assim como o magma se solidifica em rochas.

O azul permeia quase todas as obras aqui presentes tornando-se uma espécie de território cromático fronteiriço. São vários os tons presentes nesta seleção de trabalhos, a exemplo do índigo, um pigmento antigo e simbólico extraído de plantas como o Indigofera tinctoriaque tem suas raízes em várias culturas, especialmente as africanas, indianas e indígenas das Américas. Associado à intuição e à conexão com o espiritual, além do céu noturno e o mar profundo, este matiz do azul acaba por nos localizar num tempo-espaço além da racionalidade ocidental, numa fronteira vibrátil, num saber mestiço. Uma rememoração de que jamais fomos modernos. 

Cristiana Tejo