No trabalho de Daniel Mattar e de Antonio Bokel vamos ao encontro de dois modos de trabalhar com a geometria das formas, mas também com uma aura poética que os distingue. De uma forma ou de outra, a forma parece cruzar pontos de contacto nos seus processos de trabalho e de pesquisa, muito presentes em gestos estreitamente ligados ao acto de fazer que revela soluções e questionamentos que ultrapassam a questão formal, ou por vezes próxima de uma informalidade aparente. Neste aspecto, estes gestos, se assim se pode dizer, rememoram a história da arte do Séc. XX, revisitando práticas da pintura e da escultura que interrogam as metodologias e diversas variantes de composição tipificadas nestas disciplinas.
A exposição é, deste modo, um encontro entre propostas visuais que se manifestam por uma materialidade estribada no uso dos meios e na manualidade da sua execução. A ideia de “passagem”, que abre o título deste projecto, convoca uma possibilidade efémera de ir ao encontro de empatias e poéticas que constroem a exposição numa ocasião irrepetível, e assim transitória. O “modo de reconstrução” que dá sequência ao título, é uma chamada de atenção dirigida ao espectador, no sentido de auscultar e observar as diversas relações com o espaço que se desenvolvem na exposição.
Em Daniel Mattar decorre uma profícua construção de grelhas e formatos entre a matéria porosa e a subtil aplicação de uma paleta económica, que revisita a grelha, modernista por um lado e, por outro com um pendor mais metafísico, ou musical. Neste aspecto os títulos das suas obras acentuam, através da palavra, uma dualidade como por exemplo “Dueto”, apontando para uma leitura poética do seu processo como dois sujeitos que se encontram, e não apenas uma identificação técnica da obra composta por dois elementos, aos quais, de um modo mais comum, poderia eventualmente ser denominada como díptico. É na composição que surge esse binómio, atribuído assim à conjução de dois padrões que transitam entre si pelo ritmo e pela diferença de texturas, muito acentuada pela aplicação do pigmento sobre pó de madeira, matéria revolta e possuída de uma fisicalidade que, de um modo muito subtil desenha frisos de sombra na planura do fundo do suporte pintado. Contudo, o suporte é por assim dizer o horizonte de uma paisagem abstracta, como uma visão fragmentada de formas flutuantes que se movimentam no enquadramento de cada uma das suas construções visuais. Outros exemplos, tais como “Escala”, ou “Compasso” estabelecem um jogo com a linguagem entre o vocabulário musical, a que não escapa a noção de tempo, e a linguagem visual. A escala, na geometria metódica do uso da cor e na sua composição desdobra-se numa outra obra que estabelece um compasso na construção dos elementos e dos ritmos que a compõe.
Antonio Bokel, tem dedicado especial atenção à desconstrução do círculo, no decorrer do seu trabalho, e trata esta forma perfeita e metafísica, como uma de muitas possibilidades de regressar a estruturas escultóricas, que desdobaram a composição geométrica em escalas e métricas de aparente equilíbrio formal, entre o contraste do negro, e a tensão cromática, por vezes em telas soltas de apreciável dimensão. Nesta exposição, o artista regressa à escala média e, de assinalável dimensão, provocando simples alterações, ou deslocações, dos diversos elementos tridimensionais que religam a pintura e a escultura, como podemos observar no grande círculo negro, ‘sem título’,e que desenvolve outras figuras geométricas, como a linha ou o quadrado, geometria euclidiana que Bokel questiona continuamente na sua obra. São conceitos espaciais e operativos, que afectam a visão, e assim o corpo que as observa, como por exemplo na presença de uma escultura modular, como um quebra-cabeças amplificado, que sugere uma ideia de movimento, ou de uso e, de jogo, mas que remete para uma impossibilidade, quase monumental, de uma construção industrial.
Nesta lógica de jogo, os materiais e dispositivos de exposição, são absorvidos pelo processo de construção da própria obra, e o que já foi um passepartou com uma função técnica de enquadramento de um desenho, ou de um outro registo, é agora um relevo, próximo da escultura, mas assumidamente uma construção geométrica, revolucionando a forma na sua anterior funcionalidade. É na escala e na proporção que interroga um modo de ver, como uma memória da história neoconcreta ou, construtivista. E ainda assim, transgressiva dos canônes modernistas que sistematicamente revisita.
A exposição é um campo de reconstrução entre vizinhanças e poéticas que, de um modo não evidente, nos propõe uma conversa, como uma passagem por outros campos de possibilidades entre a mão e a matéria, a memória e a vivência.
João Silvério, 2024