Umbra Natural

21 Setembro - 12 Novembro 2023

O coração dos nossos ancestrais não se cansa de lembrar que cada sombra presente na natureza carrega consigo uma lição de maravilhamento pela vida. A floresta, como parte intrínseca da natureza, simboliza o desejo humano de se aventurar no mundo obscuro e enigmático do inconsciente. A floresta é uma linguagem, mil línguas sussurrando, mil sombras cintilando.

 

Na vastidão da floresta, Cássio Vasconcellos e Daniel Mattar convidam-nos para uma dança estética e existencial entre a Fotografia e a Pintura, surpreendendo-nos com sombras e vislumbres de um paraíso perdido, personificando a graça criativa e fecundadora na natureza. Aqui, a floresta ergue-se potente e intransponível, num grito mudo para uma transformação global, pessoal e urgente da Terra, na qual os artistas buscam formas distintas de reconexão com o natural. Eles sabem que incorporar a grandeza da natureza e do cosmos é uma maneira de buscar respostas para a fragilidade do ser humano.

 

Cássio Vasconcellos traz à luz a série "Viagem Pitoresca Pelo Brasil", baseada na história real das expedições artísticas e científicas que ocorreram no Brasil durante o século XIX, em que arte e ciência se aliaram na missão de mapear o território brasileiro e mostrá-lo ao velho mundo. Com isso, o Brasil tornou-se um dos poucos países das Américas a possuir um registo tão rico e instigante, às vezes retratado como um paraíso, ora belo e fascinante, ora temeroso e sublime. Defensor de um novo léxico fotográfico, Vasconcellos contesta a fotografia como um documento e faz de cada imagem a-chave-de-outra-imagem, revelando não só a exuberante beleza tropical, como a fragilidade da floresta virgem. Deste modo, embora homenageando seu tataravô, o botânico Ludwig Riedel, que fez parte da expedição Langsdorff (1825), o fotógrafo lança-se numa ousada aventura arqueológica em busca de respostas sobre as ideias de realidade, fotografia, autoria e verdade, explorando a camuflagem em todas as suas camadas. "A verdade é o seu dom de iludir", como diz Caetano Veloso e, diante do deleite proporcionado, só nos resta fingir que acreditamos, para adiar um eminente fim do mundo.

 

À suavidade milenar da floresta tropical de Cássio, junta-se o embate com a visão tecnicolor de Daniel Mattar que traz a lume imagens-foto-pinturas, sob tinta fresca, que refletem não só a sua experiência sensorial e cognitiva sobre o conceito de natural, como também uma perspetiva muito vincada de se posicionar na vida. Este pensamento traduz-se plasticamente através da recolha de tubos de tinta e a utilização de pigmentos para tingir o aparentemente artificial, criando obras que se revelam quase como espectros da nossa existência. Ao tropeçar nas fissuras da Fotografia e atentar contra o jogo especular das aparências, as obras de Mattar pairam num hibridismo de cores, ora intensamente naturais, ora electricamente artificiais, desde o esplendor do verde esmeralda, à brutalidade da brasa inflamada, para se estenderem à sombra natural, trazendo uma paisagem tão sentimental quanto trágica.

 

Com Cássio e Daniel, somos conduzidos a uma galeria submersa, imperfeita e poética, onde a natureza explosiva nos espanta e fascina, sendo um ponto de convergência entre a subjetividade dos artistas e o estado de alerta do espectador, exigindo um olhar lento, consciente e questionador. Encontros como esses são preciosos, pela singular capacidade de diálogo, de chamar a atenção para o real que ecoa nas sombras. Talvez este seja o grande momento de resistência poética e silenciosa que, interrompendo o vertiginoso ciclo do tempo, nos ajude a enfrentar a vastidão e o caos do mundo. É impossível não se surpreender com o choque da bruta beleza das obras e permanecer indiferente à floresta que pulsa inquieta perante o avesso da humanidade. Ousar esse mergulho no real é o assombro desta exposição.

 

Ângela Berlinde, 2023

 

Curadoria: Ângela Berlinde

Montagem expositiva: Pedro Canoilas

Realização: Brisa Galeria